domingo, 9 de outubro de 2016

De todas as coisas passou a se lembrar das mais aleatórias. Era previsível que o retorno trouxesse as margens da memória à imagem e expandisse o ainda existente vazio da ausência. Porém, para além de toda e qualquer previsão, acima de toda e qualquer precaução, lá estava àquela presença tomando cada cômodo da casa com uma cena do passado que repetidas vezes lhe custava à sanidade. Como uma série de pequenos gifs que se reproduziam automática e imediatamente após o primeiro passo para dentro de um novo espaço.

Começou com o banheiro. No espelho foi capaz de ver-se no passado ao lado dela. Em absoluto silêncio escovavam os dentes. Foi capaz de sentir o peso daquela presença já a tanto relegada ao status de algo intangível. Sem procurar encontrou o cheiro do passado. Quando deu por si já estava se perdendo pelas curvas do pequeno short de pijama cinza e não mais que de repente, viu-se confuso em frente ao espelho. Enquanto enxaguava a boca pensou por instantes ter entrado em uma máquina do tempo. Nunca antes havia literalmente vivido uma memória como naquele instante.

As demais lembranças talvez nem fossem assim tão verdadeiras. Mas a urgência que sentia em retomar o hábito da escrita o fez alimentar essa sensação de uma memória inundante, já que estava claro que esse seria um tema prazeroso para que pudesse praticar sob sua mais recente influência. E assim o fez. Sentou-se diante da tela esbranquiçada, acendeu a pequena lâmpada a sua esquerda e apagou a luz principal. Por alguns minutos vagou cegamente atrás de uma musica que julgasse ser adequada para conduzir-lhe até o tão desejado nível de inspiração produtiva, mas não obteve sucesso. Por fim, escolheu uma musica qualquer que terminou minutos depois e foi assim sucedida por um grande silêncio.

A essa altura já havia deixado a temática da lembrança pra trás e se emaranhava num estranho tecido narrativo no qual buscava dizer sobre uma só coisa de mais de uma maneira e ao mesmo tempo. Por fim percebeu que havia uma simples maneira de costurar todas as informações que havia atirado na superfície branca de seu papel virtual e por alguns segundos apenas segurou o queixo com as mãos, acariciou a própria barba e suspirou suas inúmeras desventuras naquele apartamento. Sentiu vontade de fumar, sentiu vontade de beber. Sentiu vontade de poder reviver outros momentos da mesma forma e com a mesma intensidade daquele em que a memória se fez de tempo presente no banheiro. Um misto estranho de lamento e satisfação preencheu seu peito.

Tomou consciência de que inconscientemente já se preparava para o fim daquele ciclo. Aquele que dois anos e seis meses antes havia sido colocado como o limite para uma realidade. Sorriu ao reparar quantos começos, meios e fins couberam antes nesse tempo. E não pensou nem por um segundo que a realidade do então agora tivesse sido algo totalmente inesperado no começo de tudo. Pelo contrário, chegava nesse ponto com a certeza de que nunca tinha tido certeza alguma do que poderia ter acontecido. Essa afirmação era o bastante para que tudo o que ocorreu se justificasse instantaneamente.


A página chegava ao fim e ele resolvia ceder ao desejo de um cigarro e a tentação de seguir sua leitura de cem anos de solidão. Era dia dez de outubro de uma enorme e incerta força naquele ano de dois mil e dezesseis. 

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