Esse lugar me faz pensar que estou sempre vivendo o mesmo
dia. Quantas lembranças angustiadas dessas lentas horas de obrigatoriedade. Quantas
vezes eu mascarei a verdade pra que se tornasse possível persistir no
cumprimento dessa obrigação. Quanto de mim agora está soterrado por essas
rochas frias? Não me alcanço. Não encontro forças pra romper o muro que eu
mesmo criei com o passar de tantas dores. Não me sinto melhor, não me sinto
maior, não me sinto mais perto.
Eu perdi. Fui derrotado pelas oito horas diárias nas quais
eu não pertenço mais a mim. Fui derrotado pela inconstância do meu habitat
natural. Deixei as dores acumularem por não ter onde, não ter como, não ter
tempo de colocá-las pra fora. Deixei que elas formassem uma capa grossa e
cinzenta em volta do meu coração. Eu não podia ceder, eu não podia falhar, eu
não podia fraquejar. Eu tinha que ser firme, que ser forte, que cumprir e
honrar todas as obrigações de uma nova realidade. Eu tinha que suportar todo o
peso e seguir em frente sempre e se mais ninguém podia dar mais, eu poderia. Eu
sempre podia, eu sempre pude, eu sempre consegui carregar montanhas e universos
nos ombros sem reclamar, sem diminuir o ritmo, sem me render!
Aceitei um fardo maior do que eu poderia. Não foi uma
escolha, foi uma consequência. E consequências consequentes me trouxeram até
aqui. Esse ponto vazio, essa prisão da alma, essa incapacidade de traduzir o
que acontece em mim. No que eu me transformei? Volto em busca do que eu já fui,
numa tentativa de compreender a minha fundação. Cavo poços, analiso fósseis,
carbono 14. Nunca foi tão difícil aceitar os fatos. Eu nunca imaginei que um
dia fosse me perder de mim. Eu nunca imaginei que nesse momento eu fosse ter
que ir atrás daquilo que eu pensava carregar entre os dentes, que eu precisasse
recriar o brilho dos meus olhos, que eu precisasse inventar uma nova batida pro
meu coração.
Não posso ser Ivan se Ivan já não vejo em mim. Não posso ser
Ivan se Ivan não consigo mais encontrar em nenhum lugar, nenhuma arte, em
nenhuma letra, nenhuma fotografia, nenhum ruído desconexo e amplo. Não posso
construir Ivan se já não sei mais do que se fez Ivan um dia. Não posso mais
deixar Ivan ao mundo se o mundo já não deixa Ivan em mim. Não posso mais
sangrar meu próprio sangue, nem comer meus próprios olhos e nem matar minhas
próprias dores e nem amá-las e nem rompe-las e nem calar em paz a minha doce
tristeza de nunca, nunca, nunca, nunca, nunca, nunca, nunca, nunca, nunca,
nunca, nunca, nunca, nunca, nunca, nunca, nunca conseguir de verdade ser de
verdade e viver de verdade e sentir de verdade e encontrar de verdade a verdade
de todas as coisas que me cabem, que me fazem, que me rompem e transpõem, de
todas aquelas coisas que não se consegue nominar e mal se sentem, mas que
sabemos, mesmo sem saber, sabemos que são as únicas e verdadeiras coisas que
importam.
Eu não quero mais estar aqui preso na prisão do tempo, dos
valores, das ordens, das buzinas, dos escapamentos, das afinidades mal estruturadas.
Eu não aceito e nem nunca quis aceitar essa vida! Eu nunca quis aceitar essa
vida em meu próprio nome! Eu vim e fiz por outros, por você mais do que por
todas as pessoas. Por você eu fiz tudo o que eu pude fazer, por você...
Eu não quero mais parar de escrever. Não quero mais virar a
chave e sorrir pra quem vem me pedir pra fazer uma alteração. Não vou dizer
mais que estou cansado, fiz um acordo comigo pra negar a existência dessa
palavra. Conheci meus limites. Trinta anos e eu conheci meus limites e rompi
barreiras, mas agora eu sei. Sei que não sei como, mas definitivamente, sei que
não é assim que eu quero viver.
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